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All men dream: but not equally. 

Those who dream by night in the dusty recesses
of their minds wake in the day to find it was vanity: 

but the dreamers of the day are dangerous men, for they may act their dream with open eyes, to make it possible.
This I did.

T.E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom, 1935 

 

 

O HOMEM

Hassan Fathy foi o mais célebre arquitecto da moderna nação egípcia – adoptando-se aqui “moderno” no sentido do Egipto pós-faraónico. A sua vida e obra foram absolutamente singulares: foi uma espécie de homem do Renascimento fora do tempo e espaço – pois nasceu, morreu e viveu a maior parte da sua existência no Norte de África, e durante o século xx.

Músico amador, dramaturgo, inventor – mas, sobretudo, arquitecto, engenheiro e professor, nasceu em 1900 na cidade de Alexandria. Cidadão cosmopolita e trilingue, não será exagerado admitir que o local de nascimento não tenha sido alheio ao seu destino: “cosmopolis” é afinal “cidade universal”, e a povoação fundada pelo macedónio Alexandre Magno talvez tenha sido a sua mais clara manifestação no mundo Antigo.

Sob domínio da civilização helenística, torna-se a maior cidade de língua grega no mundo – numa curiosa ironia de que Siracusa, por exemplo, é também parceira: que as maiores cidades do mundo helénico se encontrassem fora da Península Balcânica...

Integrada no Império Romano, a cidade passa a ser o principal centro de negócios e comércio desta civilização. 

O cosmopolitismo não se desvanece inteiramente com a islamização, e Alexandria é, com Beirute e Istambul, um dos mais vibrantes pontos de encontro do mundo europeu com o Oriente até à segunda metade do século xx – momento da História em que perde a maior parte da sua importante comunidade estrangeira, nomeadamente grega e judaica. De entre as mais conhecidas personalidades nascidas na cidade salientam-se, a título de exemplo, o poeta grego Constantino Cavafy (de origem bizantina), o cantor grego Demis Roussos ou (sic) o nazi alemão Rudolf Hess. Fathy não faz por isso mais que renovar essa ligação histórica entre Alexandria e Grécia quando, entre 1957 e 1963, viveu em Atenas, onde colaborou com o (igualmente) célebre Constantino Doxiadis.

A condição de “Cidadão do Mundo” deve ter facultado a Fathy a capacidade de olhar o “seu” Egipto de um modo peculiar. Regra geral, revela-se necessário que o observador se situe “à distância” (sub specie aeternitatis, de acordo com Wittgenstein) para poder assumir o ponto de vista exterior, a partir do qual se revela a essência das coisas... De resto, no prelúdio à edição que abordamos, afirma que em jovem sonhara ser rico, para poder comprar um iate e viajar pelo mundo com os seus amigos, acompanhado de uma orquestra alugada que interpretasse a seu gosto Bach, Schumann e Brahms – prova mais que evidente de que Hassan Fathy tinha os pés assentes em dois mundos: um pouco à maneira do Xerife Ali de Lawrence da Arábia, realizado por David Lean, interpretado por Omar Shariff (também é alexandrino...) que, minutos depois de ter morto a tiro um homem sob o Sol tórrido da Arábia, se envaidece da sua educação formal:

“I have been in Cairo for my schooling! I can both read and write!” 


obra

A partir da experiência notável de construção de um novo povoado junto a Luxor, para realojamento de toda uma comunidade que residia num aglomerado populacional erguido sobre os túmulos do Vale dos Reis, Fathy publicou em 1969 um relato descritivo das operações urbanísticas, arquitectónicas e construtivas que lhe estiveram na base. No ano seguinte, dá-se uma edição francesa (Sinbad, Paris), sob o nome Construire avec le peuple. A edição americana (University of Chicago Press) chega em 1973, sob o nome que se propagará de Architecture for the poor: an experiment in rural Egypt.

Quarenta anos depois da edição do Cairo, da responsabilidade do Ministério da Cultura egípcio, teve a Argumentum/Dinalivro a boa ideia de promover uma reedição na língua portuguesa deste belo texto. A prosa é dotada de um gosto oriental, próprio dos confabulatores nocturni: “Hombres de la noche que refieren cuentos, hombres cuya profesión es contar cuentos durante la noche.”1 Afinal, de acordo com Jorge Luis Borges, as célebres 1001 Noites terão sido recolhidas pela primeira vez em Alexandria no século xv, resultado de uma compilação de fábulas da Índia, Pérsia, Ásia Menor – para enfim chegarem ao Egipto e se organizarem de um modo sistematizado. 

O texto, de resto, debruça-se sobre a construção de Nova Gurna – sendo que esta constitui o realojamento (como já foi dito) da Velha Gurna, que consistia num aglomerado de famílias que subsistia essencialmente da pilhagem dos túmulos do Antigo Egipto. Uma actividade sem dúvida própria de um relato das 1001 Noites.

O resultado é, portanto, de leitura tão agradável do ponto de vista literário, quanto importante no contexto da História da Arquitectura do último meio século. Na narrativa de sabor exótico de Hassan Fathy, um pouco à maneira de T. E. Lawrence (no épico Lawrence da Arábia), vão surgindo personagens que acamaradam com ele na frente de obras em Gurna: carpinteiros, vitralistas, ceramistas e pedreiros, cujos nomes se vão combinando numa espiral narrativa verdadeiramente animada. Razões sobejas, todas, para justificar a aquisição da obra literária do “Mestre Egípcio”.

Acresce que a edição se enquadra na colecção “Edições sobre arquitectura de terra”, encaixando portanto numa das principais fileiras de interesse e investigação da arquitectura e construção contemporâneas: o domínio da sustentabilidade. Hassan Fathy porém, como espírito inquieto e curioso, chega a conclusões por via empírica e particular, sem se alinhar sob o estandarte desse moderno paradigma, que de resto lhe é posterior, pois o arquitecto egípcio morreu no Cairo em 1989. Paradigma em torno do qual se arregimentam tantas preocupações ecológicas nos nossos dias numa tendência que, paradoxalmente, faz com que o neologismo da “sustentabilidade” tenha conquistado direitos de protagonismo, justamente num período da História da Humanidade em que menos é praticado.

Fathy não precisava desses modernos regulamentos da térmica, que arriscam transferir o domínio da arquitectura para as mãos de técnicos que elaboram fórmulas complicadíssimas, sem as quais o arquitecto-projectista não consegue mover-se. Bastavam-lhe a curiosidade, o olhar, o entendimento e a intuição. E então, a arquitectura situava-se no campo da arte – que como sabemos, não funciona de acordo com logaritmos ou equações.|

 

1 Jorge Luis Borges. As mil e uma noites. in Biblioteca 
   pessoal: Prólogos. [S.l. : s.n.], 1988.

 


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